Solidariedade para conseguir respirar
Ariane Sousa Campos
Enquanto escrevo isso, ficamos sabendo que 2024 foi confirmado como o ano mais quente já registrado, com 44% do nosso planeta afetado por estresse de calor extremo como os humanos nunca experimentaram. Assistimos do Brasil enquanto os incêndios devastam a Califórnia e a Patagônia, sabendo muito bem da realidade da nossa própria situação ambiental desesperadora e dos resultados de um inverno seco e quente.
Desde julho passado, o Brasil e partes da América do Sul estão encobertos por incêndios intensos e incontroláveis, com suas chamas consumindo biomas inteiros. Várias capitais brasileiras têm os piores índices de qualidade do ar do mundo, e em muitas cidades, o sol nasce vermelho — uma espessa camada de fumaça cobre a atmosfera, e há fuligem por todo lugar, até mesmo nos apartamentos de prédios altos ou cidades distantes de florestas e áreas de plantações.
Com esses incêndios, já perdemos parte do Cerrado e áreas da Mata Atlântica, do Pantanal e da Amazônia. Os rios estão contaminados e muitos animais morrem, se queimam ou estão desidratados, assustados ou são atropelados ao tentar escapar do fogo. Os brigadistas florestais continuam arriscando suas vidas neste desastre climático sem precedentes, letal para todo o planeta.
Meu nome é Ariane. Sou uma ativista feminista, consultora na Purposeful, tecnologista e pesquisadora, e esta é a minha terra — onde as narinas queimam, é difícil trabalhar e até os cães e gatos ficam cansados, apáticos e afadigados. De vez em quando há alertas oficiais sobre a má qualidade do ar devido à baixa umidade, muita poluição e altas temperaturas. Parece que estamos vivendo em um filme distópico. Por quanto tempo continuaremos a viver assim?
A luta pela terra e por futuros
Não só o fogo. Em maio, chuvas torrenciais e inundações atingiram o estado do Rio Grande do Sul, na região sul do Brasil, devastando áreas urbanas e rurais, e também comunidades tradicionais e indígenas. No início de junho, os dados oficiais registravam 173 mortos, 38 desaparecidos, 423.486 desabrigados, 18.854 pessoas em abrigos e 806 feridos. Inúmeros animais — desde gado e animais silvestres em seu habitat natural, àqueles confinados em laboratórios científicos e lojas, e os domésticos — foram mortos ou desapareceram.
O país inteiro se mobilizou para ajudar o sul, para garantir que itens essenciais pudessem chegar rapidamente às milhares de pessoas necessitadas, como comida pronta para consumo, roupas de inverno, pois o frio já havia chegado, produtos de higiene pessoal, calçados, água potável e combustível para os esforços de resgate.
Ao longo desta tragédia, reflito sobre como meninas e mulheres de todas as idades se tornam ainda mais vulneráveis à violência de gênero em situações de desastre. No contexto brasileiro, devido ao racismo estrutural da nossa sociedade, essa violência é ainda mais complexa e hostil contra pessoas negras ou indígenas, e também impacta pessoas com deficiência, em situação de rua, idosos, gordas, grávidas ou amamentando, e pessoas LBTQIAPN+, de várias maneiras.
Com outras jovens ativistas feministas, senti a urgência de apoiar grupos nessas interseções que afetam as chances de vida de meninas e mulheres diante das mudanças climáticas extremas. E é urgente que as vozes das guardiãs dos territórios — as mulheres-biomas — sejam ouvidas. A ciência das mulheres indígenas, quilombolas e camponesas na luta contra a destruição da Terra e por um futuro mais justo é uma luta contra a fome, pela nossa ancestralidade e pela nossa sobrevivência.
Com o financiamento emergencial para crise climática, conseguimos nos mobilizar rapidamente para que dois grupos pudessem receber doações rápidas e mitigar os efeitos desastrosos desta catástrofe climática: o coletivo Atinuké, focado nos estudos e conhecimentos de mulheres negras, sediado na cidade de Porto Alegre, e Vila Resistência, um coletivo comunitário na periferia da cidade de Santa Maria, para o qual este financiamento já demonstra o impacto que o apoio a pequenos grupos promove em redes de ativismo locais, pois sua ação comunitária já mitigou o próximo desastre climático na comunidade ao mesmo tempo que garante soberania alimentar.
Transformando uma comunidade
A artista visual e educadora residente da Vila Resistência, Rusha Silva, compartilhou comigo a história das 40 famílias cujas mulheres fizeram essa comunidade crescer, a partir de uma condição de vulnerabilidade e da luta por moradia digna, e por meio de árduas batalhas legais e violência devido à falta de infraestrutura, saneamento básico e serviços públicos. Compreendi sua atuação em redes de fortalecimento comunitário, como a Teia dos Povos, e como com a colaboração e a troca de conhecimento com outras comunidades fizeram com que pequenos recursos financeiros fossem tão longe.
O apoio para a emergência climática, combinado com a capacidade da comunidade de coordenar o cuidado coletivo, resultou que durante os meses de chuvas extremas foi possível atender às necessidades mais básicas das famílias e suas crianças, além de outras comunidades negras e indígenas, como o Quilombo dos Machado. Em boa hora, o financiamento possibilitou a compra de ferramentas e equipamentos para restaurar as tubulações da comunidade, que não eram suficientes devido à falta de infraestrutura pública, e estavam transbordando com esgoto durante as chuvas.
Juntas, as pessoas da Vila Resistência criaram uma horta agroecológica, tanto para ensinar quanto para praticar a agricultura orgânica tradicional, respeitando o solo e o meio ambiente. Ao mesmo tempo que desenvolveram novas técnicas agroflorestais, elas cultivaram vegetais para alimentar toda a comunidade e plantaram árvores frutíferas, que agora estão fortalecendo o solo contra deslizamentos de terra. O trabalho dessas mulheres, a criatividade e a engenhosidade de suas estratégias são completamente transformadoras para suas famílias e comunidades.
Como outras jovens ativistas feministas na região, continuarei a exigir justiça climática e a pressionar por financiamento irrestrito e flexível que permita que mulheres como essas aprofundem seu trabalho e impulsionem os movimentos de base.
“Precisamos de solidariedade para conseguir respirar. Com o avanço devastador das queimadas, temos que nos fortalecer e encontrar alternativas. A urgência de estar plantando é resistir ao agronegócio e nos alinhar na luta pela terra, pela vida e para poder respirar.”
-Rusha Silva, Vila Resistência
Peço que você saiba mais sobre a devastação ambiental no meu território e acesse os links neste artigo para saber mais sobre o trabalho dessas comunidades e coletivos. Não há justiça climática sem apoio financeiro às feministas que atuam em seus territórios, e nunca houve tanta necessidade de confiar que temos as soluções que precisamos para enfrentar esta crise.
Ariane Sousa Campos é uma ativista feminista e consultora da Purposeful na região da América Latina e Caribe. Para saber mais sobre o trabalho da Purposeful, visite www.wearepurposeful.org, e para saber mais sobre a luta das mulheres-biomas, assista ao curta documentário Fora do Lugar (2023), codirigido por Ariane, com duas lideranças do território indígena Mbya Guarani em sua cidade natal, São Paulo.